sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A rica herança de Zilda Arns

A Pastoral da Criança atende 1,7 milhão de crianças em 4 mil municípios brasileiros. Gestores dizem que trabalho continuará

O maior legado deixado pela pediatra e sanitarista Zilda Arns tem 27 anos e está presente em 4 mil municípios brasileiros, sendo reconhecido em todo o mundo. A Pastoral da Criança, organização não governamental fundada por ela, atende diariamente 1,2 mil famílias desamparadas, 1,7 milhão de crianças desnutridas e 84,6 mil gestantes. A grandiosidade e o respeito conquistados pelo trabalho era imensa, tanto que Zilda conseguiu levar os fundamentos dessas ações a 20 países. Ela estava justamente contando como são as atividades da entidade ligada à Igreja Católica quando ocorreu o terremoto, causando a sua morte, na terça-feira. Hoje, o maior desafio será perpetuar essa missão.

Só no Brasil, a Pastoral da Criança conta com 300 mil voluntários. No Jardim Ângela, um dos bairros mais pobres de São Paulo, a figura de Zilda serve de inspiração. A voluntária Renata Ramalho, 28 anos, estudante de serviço social, conta que bastou uma visita da médica, em 2003, para nascer uma rede de solidariedade que hoje conta com 186 pessoas. “Aqui, a gente distribui uma mistura de farinha de ovo com soja para as famílias que têm crianças desnutridas. Mesmo de longe, ela nos incentivava pela força de vontade e perseverança”, conta Renata.

Com a morte da médica, o espaço da Paróquia de Nossa Senhora de Lourdes, no Jardim Ângela, estava lotado hoje. Pelo menos 30 voluntários da pastoral estavam no espaço em que ocorrem reuniões semanais. Eles queriam saber como ficarão os trabalhos da entidade daqui para a frente. “Nós estamos preocupados porque a doutora Zilda é a alma desse trabalho. Sua presença era o nosso maior incentivo”, ressalta Renata.

O segundo dos cinco filhos de Zilda, Nelson Arns, 45 anos, coordenador nacional adjunto da organização, pede para os voluntários não desanimarem, pois os trabalhos terão continuidade. Ele conta que sua mãe já havia treinado uma substituta. “Com 75 anos, ela reconhecia que não poderia estar à frente desse trabalho por muito tempo. A irmã Vera Lúcia Altoé, freira e pedagoga, está pronta para assumir o comando das Pastorais da Criança e da Pessoa Idosa”, revela Nelson.

Para a coordenadora regional da Pastoral da Criança em São Paulo, Maria do Rosário de Souza, a morte de Zilda não deverá enfraquecer os trabalhos dos voluntários. Pelo contrário. “Os discípulos dela sabem que o amor pelo próximo está no coração. Era isso que Zilda nos ensinava. Onde tiver uma pessoa com boa vontade, esse trabalho belíssimo será levado adiante. Principalmente nas regiões mais pobres do país, como o sertão do Nordeste e nos lugares mais distantes da Amazônia”, ressalta.

Atendimento

Os voluntários desenvolvem ações de saúde, nutrição, educação, cidadania e espiritualidade de forma ecumênica nas comunidades pobres. As atividades têm como objetivo promover o desenvolvimento das crianças, desde a concepção até os 6 anos de idade. Zilda dizia sempre que, se a família vai bem, a criança estaria bem também. Com essa máxima, a ONG estendeu as ações ao seio familiar, o que deu resultados positivos.

Os líderes da pastoral atuam em sua própria comunidade. Zilda dizia que, por viver no mesmo local, o líder conhece bem a família e as condições em que ela vive. Isso torna mais fácil a busca pelos meios de melhorar a vida dos assistidos. O líder também orienta as famílias sobre seus direitos e deveres e contribui para prevenir a violência doméstica, levando a mensagem da paz, do amor e da solidariedade. As famílias acompanhadas se sentem amparadas e fortalecidas para buscar soluções para os seus problemas.

Para unificar as ações e os métodos, Zilda desenvolveu um guia que é distribuído aos líderes. Como resultado desse trabalho, Nelson Arns diz que a trajetória da Pastoral da Criança é repleta de histórias de esperança, conquistas, superação das dificuldades e transformação social. “O acompanhamento das famílias e das crianças em cada comunidade é uma prova de que a sociedade organizada é capaz de encontrar soluções para os seus problemas”, ressalta.

O acompanhamento das famílias e das crianças em cada comunidade é uma prova de que a sociedade organizada é capaz de encontrar soluções para os seus problemas”

Nelson Arns, coordenador nacional adjunto da Pastoral da Criança e filho de Zilda Arns
Sucessora escolhida

A freira encarregada de dar continuidade ao trabalho de Zilda Arns é a irmã Vera Lúcia Altoé, 51 anos. Capixaba de Cachoeiro do Itapemirim, é educadora formada em pedagogia. Estudou teologia e espiritualidade e tem pós-graduação em alfabetização e ensino religioso. Viveu até os 13 anos na fazenda de seus pais. De lá, saiu para estudar num colégio interno de freiras, onde teve clareza de sua vocação e ingressou na vida religiosa. Após concluir os estudos, foi enviada em missão para Mato Grosso, onde atuou por 31 anos na Congregação das Irmãs da Imaculada Conceição de Castres, conhecidas como Irmãs Azuis.

Começou seu trabalho na Pastoral da Criança quando foi morar na favela do bairro de Jardim Vitória, em Cuiabá, em 1997. Exerceu a coordenação local da Pastoral da Criança e, em seguida, foi eleita coordenadora estadual, função que exerceu entre 2001 e 2004. Nos últimos quatro anos integrou o Conselho Diretor da Pastoral da Criança, como secretária. “Graças ao trabalho voluntário é possível atender as necessidades de milhões de crianças e gestantes, resgatar sobretudo a autoestima”, diz irmã Vera Lúcia. (UC)

Corpo deve chegar hoje ao Brasil

O corpo de Zilda Arns, morta no Haiti, deve chegar hoje ao Brasil, em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB). Segundo relatou o senador Flávio Arns (PSDB-PR), sobrinho da fundadora da Pastoral da Criança, o corpo ficou ontem na base do Exército brasileiro em Porto Príncipe esperando a liberação. De acordo com relatos, Zilda morreu ao ser atingida por uma pedra logo depois de proferir uma palestra dentro de uma igreja para 150 pessoas. “Ela já tinha acabado seu discurso e estava conversando com um sacerdote, que queria mais informações sobre o trabalho da Pastoral da Criança. De repente, começou o tremor. O padre que estava conversando com ela deu um passo para o lado e a Zilda recuou um passo e foi atingida diretamente na cabeça, quando o teto desabou. Morreu na hora”, relatou o senador.

Segundo Flávio Arns, que viajou ao Haiti para buscar o corpo de Zilda, ela ficou soterrada. “O resto do corpo não sofreu ferimentos. Somente a cabeça foi atingida. O sacerdote que conversava com ela sobreviveu. Já outros 15 sacerdotes que estavam próximos a ela faleceram”, assegurou o senador. O primeiro tenente Bruno Ribeiro Mário, 27 anos, do Exército Brasileiro, estava acompanhando Zilda e foi atingido por um escombro. Morreu três horas depois, por falta de atendimento médico adequado.

De acordo com a coordenação da Pastoral da Criança, o velório de Zilda ocorrerá hoje em Curitiba, no Palácio das Araucárias, sede do governo do Paraná. Amanhã, às 14h, será celebrada uma missa de corpo presente no mesmo local. Após a celebração religiosa, será feito o sepultamento no Cemitério da Água Verde, em cerimônia restrita aos familiares.

Continuidade

Uma nota publicada no site da Pastoral da Criança informa que a melhor maneira de os brasileiros homenagearem a médica sanitarista é fazendo doações financeiras na conta-corrente da organização não governamental. Segundo a nota, essa é a melhor forma de dar continuidade ao trabalho humanitário desenvolvido por ela em todo o país. Na mesma nota, os familiares de Zilda agradecem todas as manifestações e palavras de conforto e solidariedade.

Além da organização de apoio à criança, Zilda, que tinha 75 anos, implantou também a Pastoral da Pessoa Idosa, organismo de ação social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Era ainda representante titular da CNBB, do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e membro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES).

Nascida em Forquilhinha (SC), morava sozinha em Curitiba. Deixa cinco filhos e 10 netos. Ela escolheu a medicina como missão e enveredou pelos caminhos da saúde pública. Sua prática diária como médica pediatra do Hospital de Crianças Cezar Pernetta, em Curitiba, e como diretora de Saúde Materno-Infantil, da Secretaria de Saúde do Estado do Paraná, serviram de suporte técnico para a criação da Pastoral da Criança.

Zilda fez especializações em saúde pública, na Universidade de São Paulo (USP), e administração de programas de saúde maternoinfantil, pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Sua experiência fez com que, em 1980, fosse convidada a coordenar a campanha de vacinação Sabin, para combater a primeira epidemia de poliomielite no Brasil. Esse trabalho começou em União da Vitória (PR) e depois foi adotado pelo Ministério da Saúde, espalhando-se por todo o país.(UC)


Radiografia da ajuda

Alcance
300 mil voluntários
4 mil municípios atendidos em todos os estados e no DF
1,2 mil famílias, 84,6 mil gestantes e 1,7 milhão de crianças de 0 a 6 anos atendidas diariamente
400 comunicadores, que trabalham de graça
Finanças
R$ 46,1 milhões foram arrecadados pela ONG em 2009, 21% a mais que no ano anterior. Se fosse obrigada a pagar o trabalho dos voluntários, a pastoral teria de ter um orçamento de R$ 112,8 milhões. Do orçamento total, R$ 32,1 milhões são gastos com atendimento a 1,7 milhão de crianças desamparadas. O custo mensal em 2009 por criança ficou em R$ 1,66.
Origem dos recursos (2009)
Ministério da Saúde - R$ 33,8 milhões
HSBC - R$ 3 milhões
Aplicações financeiras - R$ 2,8 milhões
Companhias de energia elétrica - R$ 2,3 milhões
Criança Esperança - R$ 1,6 milhão
Simpatizantes - R$ 500 mil
Doação de fiéis católicos - R$ 486 mil
Gol Linhas Aéreas - R$ 208,3 mil
Doações
A entidade recebe doações em duas contas. Outras formas de colaboração estão descritas no site www.pastoraldacriança.org.br
HSBC
Agência: 0058
Conta-corrente: 12.345-53
Banco do Brasil
Agência: 1244-0
Conta-corrente: 23.889-9 (Correio Braziliense)

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